Controle de fake news com inteligência artificial desafia eleições de 2024
O avanço da inteligência artificial desenha um cenário desafiador em relação ao combate à desinformação nas eleições de 2024. Ferramentas para a produção de deepfake, que permite a criação de vídeos e áudios falsos, por exemplo, estão mais acessíveis e modernas, com resultados que podem confundir até os mais treinados.
Além do avanço na tecnologia, as eleições deste ano se destacam das últimas eleições nacionais em outro aspecto: o pleito pulverizado em mais de 5.500 municípios dificulta a fiscalização.
As últimas eleições no Brasil já foram marcadas pelo desafio de combater as fake news, que por vezes envolviam meramente informações descontextualizadas.
Para especialistas, embora a desinformação associada à política não seja novidade, a dificuldade de lidar com o problema pode se ampliar com o avanço da tecnologia, capaz de deixar um número maior de eleitores em dúvida sobre o que é mentira ou verdade.
Segundo Alberto Ferreira de Souza, doutor em Ciência da Computação pelo University College London, do Reino Unido, e professor emérito da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), 2023 foi um ano divisor de águas no desenvolvimento de softwares de deepfake.
“As imagens se tornaram quase indistinguíveis [das reais]”, afirma. “Não se pode mais acreditar no que se ouve ou vê nos dispositivos eletrônicos. É preciso pesquisar e não sair compartilhando, por mais que pareça real.”
Paloma Rocillo, diretora do Iris (Instituto de Referência em Internet e Sociedade), afirma que o uso de inteligência artificial na elaboração de fake news as tornam mais sofisticadas, o que dificulta a checagem de conteúdos manipulados.
“Faltam ferramentas automatizadas de identificação de conteúdos fabricados com o uso de inteligência artificial. Considerando que o volume de conteúdos que circula na rede é muito grande, a inexistência dessas ferramentas prejudica bastante a contenção dos impactos de viralização. Mesmo a identificação por humanos é bastante difícil devido à verossimilhança”, afirma.
Exemplifica a preocupação com as deepfake nas eleições de 2024 um caso investigado pela PF (Polícia Federal) do Amazonas desde dezembro passado.
De acordo com a instituição, uma análise de áudio comprovou a manipulação por meio de inteligência artificial de um áudio atribuído ao prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), que buscará a reeleição.
No conteúdo divulgado nas redes sociais, uma voz atribuída a Almeida insulta professores da cidade. Dois suspeitos foram identificados. O caso foi noticiado pelo jornal O Globo.
Segundo a PF do Amazonas, a investigação segue em sigilo. O uso da tecnologia para criar fake news de candidatos em pré-campanha configura crime de difamação eleitoral, com pena de detenção, comunicou a PF.
Para Caio Machado, diretor do Instituto Vero e especialista em inteligência artificial e desinformação, o pleito de 2024 traz como desafio a fiscalização.
“Estamos falando de mais de 5.000 municípios no país, fácil acesso a celular e recursos financeiros mais abundantes em razão do período de campanha. Como fiscalizar isso? Por mais que as autoridades estejam empenhadas, acredito que não vão dar conta”, afirma.
Outro aspecto que torna desafiador o cenário, segundo Heloisa Massaro, diretora do InternetLab, é a capacidade de fiscalização da imprensa nas diferentes cidades do país.
“Como as eleições municipais são mais pulverizadas, não há uma cobertura midiática sobre todas as campanhas. Muitos lugares no Brasil são basicamente desertos de notícias, sem veículos de mídias locais robustos e imparciais.”
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) tem tentado atuar em relação à desinformação nas eleições. Em discurso na abertura dos trabalhos do tribunal nesta quinta (1º), o presidente da corte, Alexandre de Moraes, disse que a “perigosa utilização de inteligência artificial” se tornou um dos grandes riscos da campanha.
O tribunal está tratando a temática por meio de alteração da resolução sobre propaganda eleitoral.
Na minuta da resolução, uma das propostas é instituir a obrigatoriedade de informar o uso de tecnologias digitais “para criar, substituir, omitir, mesclar, alterar a velocidade, ou sobrepor imagens ou sons, incluindo tecnologias de inteligência artificial” na propaganda eleitoral.
Há a especificação de que a obrigação se refere à criação ou edição de conteúdo sintético que “ultrapasse ajustes destinados à melhoria da qualidade da imagem ou som”.
A minuta, debatida em audiência pública no dia 25 de janeiro que contou com a presença de entidades, especialistas, advogados e representantes de empresas, ainda vai ser submetida a análise do plenário do TSE, o qual deve aprovar os normativos até o dia 5 de março.
Durante o evento para recebimento de sugestões, representantes de plataformas como Google e Meta afirmaram que as empresas estão empenhadas no combate às fake news, mas defenderam que a resolução saliente que a responsabilidade pelas informações é dos produtores de conteúdo.
Especialistas consultados pela Folha pontuaram algumas críticas sobre o texto da minuta, como trechos genéricos e pouco técnicos.
Para Paloma Rocillo, o item que trata da obrigatoriedade de informar o uso de tecnologias digitais é amplo porque parece estender a obrigação a qualquer usuário que usa a tecnologia para produzir conteúdo, algo corriqueiro atualmente.
Segundo ela, a minuta não deixava claro se até o usuário comum, que usou um aplicativo para fazer ajustes não danosos a um conteúdo, pode ser penalizados pela resolução, que remete à punição, prevista no artigo 323 do Código Eleitoral, de detenção de dois meses a um ano ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.
Heloisa Massaro concorda que a minuta apresentava termos e conceitos imprecisos o que pode ser melhorado até a aprovação da resolução.
Para Massaro, é também maior, nos pleitos municipais, a possibilidade de que situações de violência promovidas no ambiente virtual extrapolem para o offline.
“Em uma dinâmica local, existe mais proximidade entre candidatos e a população no dia a dia. Uma candidata a vereadora vítima de fake news, por exemplo, tem mais chance de ser abordada andando na rua ou fazendo compras.”
Tanto Caio Machado quanto Paloma Rocillo argumentam que um dos grandes desafios para enfrentar o cenário é promover o letramento digital dos usuários de internet a fim de que possam identificar a desinformação.
“A falta de solução para o problema dá brecha para que candidatos e partidos ganhem eleições não com base em propostas, mas simplesmente atacando e difamando os adversários. Isso é a antieleição, a antipolítica. Pode-se destruir uma democracia criando mentiras, dando aos políticos meios de ganhar o jogo quebrando as regras”, afirma Machado.
Por Folha de São Paulo