Injustiça
Milito na área do direito penal há mais de 30 anos. Leciono há quase esse tempo; tenho oito livros escritos nesta seara; mais de duas centenas de artigos publicados e proferi inúmeras palestras, nem sei quantas, por todo o Brasil.
Sempre analisei tecnicamente o direito de modo a não cometer injustiças. Não gostaria de ter em minha consciência a condenação de inocentes.
Culpados que foram inocentados, vi inúmeros. Diversas vezes tinha a plena certeza de que a pessoa era culpada, mas a Justiça entendeu não haver provas suficientes para a condenar ou existir vício processual que maculava toda prova produzida. E é assim mesmo que ela deve funcionar. Eu mesmo pedi inúmeras vezes a absolvição justamente pela existência de dúvida instransponível, que chamamos de fundada.
Dói demais quando pessoas são presas sem o menor indício da prática de algum delito que as levaria à prisão ou mesmo sem terem cometido nenhum crime. E, mesmo assim, em uma sanha punitiva, acabam presas, muitas vezes sem a menor ideia do que está a ocorrer.
Pior, ainda, não raras vezes, apenas para dar exemplo ou mesmo por ódio pelo resultado produzido por alguns, processa-se e condena-se a todos, sem se importar com o que cada um fez ou sua intenção (dolo) em o fazer.
Uma das coisas que sempre ensinei é que não se faz possível a punição “por baciada”, que chamamos de coletiva. Não é porque uma pessoa dentre muitas cometeu uma infração penal, que iremos prender e acusar a todas elas por não termos como identificar o verdadeiro culpado. Urge, nesta hipótese, investigar melhor para individualizar a conduta de cada uma e punir apenas o autor do delito e não quem apenas estava no local e nada fez. Se isso não for possível, nenhuma delas pode ser acusada e muito menos presa.
O direito penal não pune o particular que se omite e não impede a prática de crime. Somente quem tem o dever jurídico de agir é que possui a obrigação de impedir a produção do resultado. Posso citar como exemplo, os policiais. Não sou em quem diz isso, mas o Código Penal em seu artigo 13, § 2º.
Simplesmente estar ao lado de quem cometeu um delito sem ter dele participado, seja auxiliando, instigando, induzindo ou mesmo previamente o combinando, não enseja a participação nele.
Pretender empregar a teoria dos crimes multitudinários para justificar a ausência de individualização da conduta a fim de punir a todos (de baciada), pouco importando a conduta praticada, ou ausência dela, fere o devido processo legal e o direito penal constitucional.
O crime multitudinário é o cometido pela multidão em tumulto, isto é, pela turba muitas vezes enfurecida, o que é comum nos linchamentos e nas brigas entre torcidas.
Contudo, só será possível condenar a turba pelo mesmo crime quando houver o vínculo psicológico entre os participantes para a prática desse mesmo delito, malgrado algumas pessoas tenham efetivamente realizado os atos executórios (coautores) e outras apenas dele participado, seja induzindo, instigando ou auxiliando materialmente os autores (partícipes), nos exatos termos do que diz o artigo 29 do Código Penal.
Em casos desse tipo, não sendo materialmente possível individualizar a conduta de cada um, como pretenderam o mesmo resultado, a denúncia pode apenas descrever o fato principal e imputar a todos os participantes (coautores e partícipes) o mesmo resultado (naturalístico ou jurídico).
Por outro lado, mesmo em linchamentos e brigas entre torcidas, ou seja, nos crimes multitudinários em geral, há aqueles que efetivamente quiseram o resultado morte ao agredirem a vítima ou vítimas (dolo direto); que, muito embora não quisessem o resultado, assumiram o risco que ele ocorresse (dolo eventual); que queriam apenas agredir e causar lesões corporais, mas o resultado morte adveio por sua culpa (crime preterdoloso – lesões corporais seguida de morte); que queriam apenas agredir e causar ferimentos (lesões corporais); que incentivaram os demais a causar determinado resultado (responderão de acordo com sua intenção e resultado produzido). E há, ainda, aqueles que nada fizeram e nada quiseram, muitas vezes estando apenas no local, tentando separar a turba ou para impedir que o resultado se produzisse; neste caso, sequer crime há, pelo contrário.
O direito foi criado justamente para regular a vida social, prevenir a prática de infrações e punir quem as cometeu, mas sempre dentro da legalidade estrita.
Para isso, existem regras que devem ser obedecidas, previstas na Constituição Federal e na legislação em geral, exatamente para se punir os verdadeiros culpados e proteger os inocentes.
Punição sem culpa é ato arbitrário, despótico e execrável, típico de países totalitários em que não há estado de direito.
Em um verdadeiro estado democrático de direito, como já dizia Voltaire: “É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente”.
*César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá